segunda-feira, janeiro 21, 2008

Diálogo com Eça de Queiroz

Na Póvoa de Varzim Eça de Queiroz ainda é figura tutelar. Sê-lo-á sempre.
__ Meu caro Eça, será que a vida quotidiana dos portugueses vos interessa?
__ Sim, e muito. Sinto que os comentários que fiz in illo tempore continuam actuais, fazem tantas citações das minhas obras que julgo ser intemporal. Para meu bem e meu mal...
__ Será que as pessoas não mudaram mesmo nada?
__Claro que mudaram. Nalguns casos para bem pior. Estão mais refinadas na sua hipocrisia, mas a choldra é sempre a mesma.
Assim começou este diálogo interessante. Era noitinha, a tarde tinha sido soalheira embora fria. Tempo de ananases não era propriamente - como diria o Eça - mas um sol de inverno retemperador e capaz de recarregar baterias. Falámos de tudo um pouco. De política, de religião, de futebol e... de jornalismo. O tema interessou sobremaneira o genial escritor. Eis algumas tiradas que respigámos :
__ O jornalismo reflecte a saúde (ou a doença) da nação. Nele se plasma o que de bom e mau tem o país. É uma amostragem fidedigna. Vejo actualmente três categorias de jornalistas: os que vivem sempre a criticar os vícios do regime e da sociedade em geral, os que passam a vida a dizer mal desses, e, em simultâneo, a bajular as instituições e... uma terceira categoria, a dos que metem a cabeça na areia e, com medo de serem politicamente incorrectos, com medo de perderem mordomias, se refugiam no passado, contam mil-e-uma estorinhas sobre coisas de antanho, recheando tudo com alguns ditos e anedotas que não ferem os políticos ou os senhores que mandam actualmente... é fácil de identificar esta tipologia. Há-a em todas as localidades.
__Só essas três categorias?
__É claro que há mais, mas estes tipos são paradigmas, são exemplares mais marcantes de uma geração. Sei que há também os que só falam de futebóis, de vida cor-de-rosa, de finanças, de economia, de religião e outros temas sempre pertinentes, mas aquelas três categorias são as mais marcantes, as que definem o tipo de jornalismo vigente.
__ Em qual delas se revê?
__Sempre fui homem de REALISMO. Nunca me refugiei na passado para não enfrentar o presente. Nunca usei a bajulação, a sabujice, para mostrar galões ou impressionar os mandantes do meu tempo. É óbvio que, predominantemente, me revejo no primeiro escalão: na trincheira dos que combatem as violências e os desmandos do poder, seja ele qual for. Sempre fui um jornalista (e escritor) de intervenção...
__Mas isso hoje em dia é mal pago, pouco estimulado. Hoje fazem-se livros a bajular governantes, grandes empresários, grandes jogadores de futebol, grandes rainhas do jet-set, grandes autarcas... isso é que rende, isso é que dá reputação. Falar de gastronomia, de locais de veraneio, de sítios para jogar... para amar, pescar, repousar, isso é o que está na moda.
__É óbvio que no meu tempo também havia isso. Os engraxadores sempre existiram, os aduladores da corte, os que incensavam as «augustas personagens» para terem algo a que se estribar. Simplesmente nunca atingiram a posteridade. Foram sempre ratos da corte, toupeiras do clero, rãs vaidosas coaxando no charco da mediocridade. Aqui na Póvoa vejo algumas rãs todos os dias... algumas até se atribuem a si próprias um coaxar queirosiano!!! Suprema petulância!
__Mas acha que só dizer mal do poder é que dá dignidade aos jornalistas? Não será uma visão redutora?
__É claro que não. Mas como é mais fácil elogiar e lançar panegíricos aos quatro ventos, reconheço o mérito dos que, sujeitos a mil-e-uma vicissitudes são capazes, têm a coragem de cortar a direito e dizer as verdades quando elas se impõem e ninguém quer assumir o odioso de as dizer. Recorda-se daquele meu dito «cão lírico ladra à lua... cão realista agarra o melhor osso»?
__ Está a defender o «cão realista»? Era uma apologia da corrente que se ia impondo no momento... o realismo.
__Nem sim nem não. O «cão lírico», por vezes, é o que tem razão, o que sabe que não tem o beneplácito do poder, mas mesmo assim uiva feroz contra a prepotência e o arbítrio reinantes. Ele sabe que não pode, de per si, mudar o mundo, mas tenta. Pelo contrário, o «cão realista» é o que se sujeita ao «osso» do poder e é capaz de morder o «lírico» só para ganhar mais um osso...
É o acomodado ao situacionismo.
__Mas o «lírico» pode morrer à fome... enquanto o «realista» prospera e tem mordomias sem conta...
__Tem razão, rouxinol. Olhe o Camões, deu tanta bordoada nos nobres, nos opulentos, e quase morreu de fome, enquanto outros, bem mais medíocres, mas bem mais «realistas»...
A conversa prosseguiu, noite adentro, a lua por companheira e testemunha fiel deste diálogo franco e aberto com uma das figuras cimeiras da nossa cultura. Sempre actual, sempre acutilante, sempre dentro das realidades, este homem de letras que enobreceu a Póvoa de Varzim, Portugal e todos os portugueses.

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